04/04/2011

À ESPERA - MIA COUTO

"Aguardo-te
como o barro espera a mão.

Com a mesma saudade 
que a semente sente do chão.

O tempo perde a fonte
e a manhã nasce tão exausta 
que a luz chega apenas pela noite.

O relógio tomba
e o ponteiro se crava
no centro do meu peito.

Fui morto pelo tempo
no dia em que te esperei."

Mia Couto in Idades Cidades Divindades

PALAVRA QUE DESNUDO - MIA COUTO

"Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro 
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo."

Mia Couto in "Raíz de Orvalho

DESENCONTRO - MIA COUTO

"Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces."

Mia Couto in "Raíz de Orvalho"

07/01/2011

GUARDA-CHUVA

Ás vezes penso que foi um sonho...

Mas a realidade abocanha-me os sentidos e embacia-me a mente.

Foi num passado já longínquo, numa terra distante e fértil, onde o mar tudo banha em seu suave balanço, onde tudo acontece e tudo apetece.

Estava-se na época das chuvas, quando o céu se abre e cospe a sua raiva destemidamente. Ninguém se atrevia a enfrentar a intempérie e todos aguardavam, sem sobressalto, que a agitação dos nimbos se acalmasse e escoasse pelas gretas da terra aquecida.

Numa janela, um rosto pequeno espreitava anonimamente; a sua ânsia de sair e correr lá para fora era demasiado evidente e o seu coraçãozinho pulava de contentamento com a aguardada expectativa.

Abriu-se então uma brecha e a menina, radiante, esgueirou-se para a rua ainda húmida, como se beijada pelo orvalho. Ia descalça, como sempre fazia, para melhor sentir o toque da terra; chapinhava nas poças transbordando felicidade por aquele momento roubado à rotina dos seus dias.

Mas depressa se esfumou aquele instante, tal como a água, momentos antes, havia sido bebida pela avidez do solo.

Foi numa tarde daquelas que "Memen" (assim se chamava a menina), ávida de coisas novas e algo estranhas naquelas paragens, pediu ao pai um "guarda-chuva", artefacto pouco usado e nada útil durante aqueles "dilúvios".

Seu pai, homem de fôlego e com grande coração, compreendeu o desejo da filha e, nessa noite, chegou a casa acompanhado de um lindo guarda-chuva às bolinhas amarelas, que lhe estendeu como se lhe entregasse algo muito frágil e valioso.

Ela tocou-o, ao de leve, e sentiu um arrepio apossar-se do seu ser que lhe subiu pela espinha até dentro da sua barriga.

Que magia rodeava aquele objecto!!!

Tinha sonhado tanto com ele, que agora que o tinha na mão, não sabia exactamente o que fazer.

Levou-o consigo para o seu quarto e ali, abraçada a ele, adormeceu, sonhando um sonho que só as crianças sabem sonhar.

Ainda mal tinha despontado o dia, já "Memen" estava vestida e sentada na cama com a sua mais recente aquisição e com o olhar perdido, colado à janela; os seus olhos, negros como azeitonas, fitavam o céu que sorria agora em tons de azul brilhante.

Mas como poderia ser??? Onde estava a chuva do dia anterior??


"Memen" correu porta fora, armada dos seu guarda-chuva e esperou, determinada, que as nuvens voltassem a transpirar aqueles fios de água que ela tanto almejava.

Mas o dia não estava de feição...a chuva tinha-se mudado para outra morada e o sol brilhava agora no seu esplendor.

A tarde chegou e nada mudou e "Memen", sempre de guarda chuva na mão, vagueava pelo jardim verdejante, onde dois pequenos caracóis se haviam alapado no assento do seu baloiço.

Triste e desesperada, com a decepção estampada no rosto, "Memen" deixou o jardim e caminhou para casa. Subiu as escadas cabisbaixa e chegou ao seu quarto ensolarado.

Chegara a hora do seu banho e "Memen", já pronta a saltar para dentro da banheira, de repente PAROU!

Porque não???....

Bem...realmente não era a mesma coisa, mas....que importava??

Deveria ser uma sensação muito parecida com aquela que ela sonhara.

E de novo entrou no quarto, de rompante, agarrou no seu guarda-chuva às bolinhas amarelas e entrou para a banheira, desenfreada.

Abriu o chuveiro por cima da sua cabeça e ali ficou, estática, como que estarrecida, inebriada de tamanha felicidade, sentindo, finalmente, as gotas de água a cair e escorregar pelo seu guarda-chuva!

Carmen Sêco / 05.01.11

06/01/2011

dificuldade de comunicação

Certo dia, pela tardinha, estava eu na minha casa, no Xai Xai, mais propriamente no quintal, eis que vejo aproximar-se de mim uma mulher negra que aparentava estar pela meia-idade. Trazia na mão uma lata, daquelas que se compravam cheias de petróleo, as quais, depois de esvaziadas, serviam para as pessoas transportarem água, encherem de castanha de caju, para depois venderem aos merceeiros no mato etc.

 

A mulher negra aproximou-se da mulher branca, que neste caso, particular, era eu, e disse:”combela mate senhora” fiquei a olhar, sem perceber o que aquele pedido significava, vi que era um pedido mas não descortinava o seu significado, e disse:”quê!!!?” repetiu o pedido: “combela mate senhora” e eu nada! Então, ela resolveu agir de outra forma mais explícita. Pegou-me num braço e tentou levar-me ao sítio onde estava o que descodificava o enigmático pedido. Deixei-me levar, pois também estava tomada pela curiosidade. Quando chegamos perto da torneira, eu virei Édipo e ficou desfeito o enigma. Ela queria água.

 

Disse:”haaaaaaaa!!!! Você quer águaaaaaa!!! Está bem! encha a lata.” Encheu a lata, fez umas vénias, e prenunciou uma frase, essa sim era-me familiar. Foi: “kanimanbo senhora” Foi-se embora e que eu me lembre, não voltou mais

 

Rosa Cortez    

    

05/01/2011

Água de Lisboa

Decorria o mês de Maio de 1969. O frio já se fazia anunciar. Sinal disso era as mamanas com as cabeças cobertas, com as capulanas coloridas. Eu tinha pisado terras de África havia seis meses. Morava numa terra a que uns chamavam vila de João belo outros Xai Xai.

 

Pela tarde, devia ser pois, o meu marido estava em casa, os funcionários públicos tinham horário único, apareceu-me um velhote negro, o qual se sentou na soleira da minha porta da cozinha e disse-me: “senhora dá-me água de Lisboa!” Eu dei uma gargalhada. Eu só tinha vinte e um anos, e com essa idade nós rimos por tudo e por nada, mas esta gargalhada não foi só fruto da juventude, foi pelo absurdo, pensava eu, do pedido dele. E disse:”ouça lá você por acaso não apanhou muito sol na cabeça? Então eu acabei de chegar a África e você quer que volte para a Europa buscar-lhe água?”e pensei: calhando isto é um ritual de praxe, eu era caloira em terras de África. O meu marido ouviu a nossa discussão, no bom sentido claro, e perguntou:”o que se passa?” “ele quer água de Lisboa. Eu acho que ele está doído” “não está nada” respondeu o meu marido, e também se riu, não dele mas de mim, e disse: “o que ele quer é vinho”. Perante aquela resposta fiquei de boca aberta. Também não era para menos.

 

Ora qual foi a ilação que eu tirei daquela história? Foi que os brancos foram dizer aos negros que Lisboa era uma terra abençoada ao ponto de a água que lá havia ser vinho. O vinho sempre conquistou os povos, desde os tempos bíblicos.

 

Rosa Cortez

 

P.S. Escusado será dizer que lhe demos um copo de vinho ou seja,”água de Lisboa” e ele fez uma festa     

 

 

 

   

30/12/2010

português incorrecto

Tinha vinte e um anos, morava numa terra chamada Xai Xai algures no continente africano, junto de uma praia de areias douradas e águas límpidas, tinha de meu um gato e uma galinha, o gato chamava-se sabu e a galinha não tinha nome, por companhia tinha um rapazito negro, de doze anos que dava pelo nome de Semião, o meu marido trabalhava a doze quilómetros de lá, não havia ninguém branco por perto

 

Fiquei doente com paludismo, como nunca tinha estado em contacto com o parasita foi de (caixão a cova) fiquei com quarenta graus de febre, escusado será dizer que não conseguia fazer o comida, mas alguém teria que a fazer, como não havia mais ninguém foi ao semião que calhou a quase hercúlea tarefa, ele só tinha doze anos e com a agravante de não conhecer os hábitos dos brancos. Coitado lá ia com a minha ajuda. Da cama ia-lhe dizendo «Semião põe a panela ao lume, descasca batatas» ele não tirava as cascas das batatas era mais as batatas das cascas mas pronto!!! A primeira vez não lhe disse qual era a quantidade de sal, olha! despojou quase um quilo, tive que por batatas cruas para absorver o sal, mas!!! Não havia alternativa

 

Eu fui ao médico, ele entre outras coisas, receitou-me um xarope. Para tomar o xarope era necessária uma colher. O meu marido trouxe os medicamentos quando saiu do serviço. A casa onde morávamos, tinha vários quartos e esses mesmos quartos eram servidos por um corredor que se estendia da sala até ao fundo da casa, o meu quarto era o último do lado direito, de quem entrava, a cozinha era contígua a sala.

 

Chamei: «Semião» resposta: «senhora» «traz uma colher de sopa» fique a espera e espereiiiiiii e espereiiiiiii e continuei a esperaaaaaar! Até que disse ao meu marido: «ele nunca mais chega» acto continuo levanta-se o meu marido, quase que esbarra com ele. Ora a que é que se devia tanta demora????? O Semião interpretou á letra o pedido que lhe tinha sido feito «traz uma colher de sopa» e veio pelo corredor com uma colher cheia de sopa, muito devagarinho, para não entornar a mesma. Daqui se conclui que o pedido não foi feito num português correcto. Em vez de uma colher de sopa, devia ser uma colher das de sopa

 

Rosa cortez

Maria Isabel

Tinha vinte e dois anos quando fui pela primeira vez, de um rapaz, que eu queria que fosse menina, mas não foi, mas depois de ele nascer não o trocava por todas as meninas do mundo. Quando o meu filho nasceu os médicos verificaram que ele tinha uma hérnia inguinal. Eu fiquei com muito medo pelo facto de ele chorar o intestino estrangulasse então resolvi contratar uma mulher, já adulta em quem eu pudesse confiar, para me ajudar a cuidar dele, enquanto eu fazia o trabalho da casa ela andava a entrete -lo para que não chorasse a empregada chamava-se Maria Isabel. A Maria´era a primeira mulher, de três, de um homem. e segundo a versão dela ele queria que ela, e as outras trabalhassem e ele nada fazia e ela resolveu deixa-lo e ir trabalhar. A Maria tinha três filhos, dois rapazes e uma menina que ficaram com a mãe dela. 
Passados uns dias de estar ao meu serviço a Maria começou a apresentar queixas de dores de barriga e ficava na cama. Eu não tive coragem de a mandar embora sabendo que estava doente cheguei a fazer todo o trabalho e a cuidar do meu filho, como podia
e a levar, á Maria, chá com analgésicos para as dores abrandarem, mas claro, abrandavam mas voltavam. Comecei a ver que havia algo mais complicado
Isto passou-se no xái xái.Havia lá uma missão suíça da Igreja presbetériana que tinha um médico formidável, até hoje ainda não encontrei outro, o dito médico atendia toda a gente mas o hospital estava mais virado para gente de cor cheguei a consulta -lo.
O médico estava no consultório a ver um doente, sorridente, simpático, bem disposto, isto, muitas vezes, depois de já ter atendido uma serie de pacientes, chegava uma mulher em trabalho de parto que precisava dele para uma cesariana. Largava o que estava a fazer e fazia o que tinha a fazer, a mulher era preparada pelas enfermeiras depois deixava a mulher e a criança entregue ás mesmas enfermeiras e vinha continuar o atendimento que tinha interrompido e trazia o mesmo sorriso·
Disse á Maria que fosse aquele médico, ela foi, da primeira vez o médico não a viu e as enfermeiras deram-lhe remédio para as lombrigas. Eu disse: não, Maria, isso não são lombrigas volta lá e diz que queres ser vista pelo médico à segunda ou terceira vez o medico viu-a e imaginem qual foi o diagnostico? A Maria tinha quistos nos ovários , tinha que ser operada. Nesse hospital havia, e há umas palhotas num largo onde os familiares dos doentes ficavam para lhes dar assistência, entre essa mesma assistência estava fazer-lhes, a comida pois eles não gostavam da comida do hospital.

Resolvemos mandar a Maria para o hospital para fazer a operação tratamento não era totalmente de graça, ela não tinha dinheiro, paguei eu, era pouco e ela depois pagava-me com o trabalho, paguei quatrocentos escudos. Era preciso também fazer o rancho para a mãe dela fazer a comida enquanto ela lá estivesse internada.fiz-lhe o rancho e a mãe dela veio dormir a minha casa uma noite. A velhota vinha do mato, não sabia uma palavra de português eu não sabia quase nada de landim, a Maria era interprete. A mãe chorava muito e falava mas eu não percebia nada e perguntava: o que esta a tua mãe a dizer? Ela respondia: está a dizer que tem medo que eu morra

No dia a seguir a Maria foi para o hospital, a mãe foi com ela, foi operada, tudo correu bem. Teve alta, veio para a minha casa e esteve comigo até eu me vir embora·
Tenho saudades dela e de todos os outros que estiveram comigo

Rosa Cortez


viagem atribulada

Ia eu de viagem do Xai Xai para Lourenço Marques. O veículo de transporte era um automóvel, o qual era conduzido pelo meu marido, os passageiros, era eu que tinha passado, havia pouco tempo, pela experiencia, enriquecedora, de ser mãe, pela primeira vez e o meu filhote, que não tinha passado um mês, desde que tinha visto a luz do astro rei pela primeira vez.

 

O pequenote ia acomodado no banco de trás do carro, dentro de uma alcofa, feita de palha, alcofa essa que tinha saído das mãos de um artesão, que talvez por erros dele e má fortuna, estava detido numa penitenciaria lá para os Lados do Xai Xai, e enfeitada por mim, com toda a paciência, inerente ás mulheres que vão ser mães principalmente, pela primeira vez

 

A alcofa era revestida com um tecido amarelo com bolinhas brancas. Naquele tempo não era usual fazer-se eco grafias, e essa falta impedia-nos de saber o sexo do bebé antes de nascer, então optei pelo amarelo que dava para menino e menina.

 

A viagem corria bem, até quede repente, tão de repente que nem houve tempo para dizer «ai» salta uma cabrita do mato para a estrada, para a frente do carro. O condutor, meu marido, fez uma travagem de emergência, tão emergente quanto lhe foi possível, mas mesmo assim albarruou a cabrita, que não morreu, pelo menos ali

 

Como naquela época não se usava cinto de segurança, nem outras protecções, todos nós ficamos sujeitos ás leis da física sem nada que as contraria-se A alcofa, e seu precioso conteúdo, tombaram para o chão do carro, ficando pela ordem lógica, a primeira por cima da segunda, o pequenote que nunca se tinha visto numa situação daquelas, e todos nós temos medo do desconhecido, começou a chorar desesperadamente. O que hoje me dá vontade de rir, quando recordo, naquela altura provocou-me pavor. O meu filho chorava aflitivamente. Não pensei em mais nada senão em tira-lo daquela situação deplorável, assustadora para ele e para mim. Abri a porta do carro e saí para a estrada, a minha sorte foi que uma coisa, que também não se usava naquela época, era muitos carros na estada, tirei a «malvada» da alcofa de cima dele, peguei-lhe ao colo e a muito custo lá o calei. Fiz o resto da viagem com ele ao colo. Felizmente não lhe aconteceu nada de mais.

 

A viagem tinha o intuito de consultar um médico, neste caso uma médica, Dr. Ana Flores Costa pediatra. Contei-lhe o episódio e ela descansou-me

Da cabrita não soube mais nada

 

Rosa Cortez

16/12/2010

MINHA BEIRA

Como sinto a tua falta

minha terra bem amada;

quanta saudade me assalta

quando mais desamparada!


Lembro a tua cor vermelha

e o mar em suave movimento...

Nada aqui se assemelha

ao teu ritmo quente e sonolento.


Nas tuas ruas floridas

as acácias reverberam;

contam verdades escondidas

que outrora todos souberam.


Como és bela, assim estendida

pela praia ao pé do mar.

É impossível, nesta vida,

alguém deixar de te amar!


Guardo em mim esse cheiro cálido

dos fins de tarde e do amanhecer

e sinto rolar em meu rosto pálido

lágrimas de tristeza e de prazer.


Tristeza por te ter deixado

tão cedo e sem querer.

Mas tenho em mim sonhado

o dia em que te vou rever...


Sinto uma tamanha dor

ao pensar em ti, minha Beira,

que, confesso sem pudor,

me sinto sempre ESTRANGEIRA!!!


Carmen Sêco - 20.11.10

09/12/2010

No fio da Navalha

No fio da navalha 

Éramos jovens conscientes que viver em Moçambique, era em 1976, cada vez mais, viver no fio da navalha. Por tudo, mas muito mais, por nada, era certo que o dia seguinte seria mais uma incerteza. A lei era selvagem e qualquer iletrado proprietário de uma kalachnikof ditava leis. Eram as rusgas nocturnas a locais de lazer que normalmente enchiam as prisões de bairro com os distraídos que se esqueceram do B.I. em casa (depois enviados para campos de reeducação). Eram os controlos selvagens nas estradas com guerrilheiros esfomeados que se apoderavam do que lhes interessava, para matar a fome, o vício e outras necessidades vingativas. Eram as idas para trabalhos nas machambas, em que improdutivamente capinávamos numa semana o mato, exactamente o mesmo mato que entretanto crescera desde a última vez que ali estivéramos. Eram as reuniões, os comícios e as banjas a toda a hora dos “grupos dinamizadores”, do bairro, da Universidade, do Liceu, dos trabalhadores, etc. Era… bom! Isso agora não interessa nada, mas para se entender a história que se segue, fazia falta este preâmbulo.
As idas de fim-de-semana à Praia da Ponta do Ouro, haviam-se tornado um habitue para nós que vivíamos, estudávamos e trabalhávamos em Lourenço Marques, agora Maputo, quando não surgia outra ideia melhor para “fugir” da cidade que nestes dias se estava a tornar demasiado stressante com todas as notícias, contra-notícias e boatos, que sempre circulavam a propósito de tudo e de nada. Dizia-se “o Xiconhoca tem orelha de boateiro”.
Tínhamos então terminado mais um fim-de-semana na praia da Ponta do Ouro. Por razões de segurança nossa (nunca o fizéramos no tempo da guerra), viajávamos sempre em comboio, de várias viaturas, partindo umas atrás das outras, à vista na “cola da poeira”. Na altura eu tinha ficado responsável de um Skoda, carro que não merecia muita confiança para viagens longas. Eu era o condutor e levava como pendura o Thompon, um colega negro, professor como eu, no Liceu António Enes. Precisamente pela pouca fiabilidade no Skoda, partimos à frente.
Andados cerca de dez quilómetros surge o primeiro controlo na estrada. Dois tambores ao alto, encimados com uma vara de bambu atravessada de lado a lado. Não se vê vivalma, mas sabemos, por outras experiências menos felizes, que devemos parar. Paramos e vou logo abrindo capô e bagageira para permitir a revista. Aos poucos, do nada e de entre as árvores vão surgindo os nossos “camaradas guerrilheiros”. Um deles, reconheço-o, traz a tiracolo o rádio transístor com que me ficou há uns quinze dias atrás. Está desligado, devem-se ter acabado as pilhas, penso eu. Entretanto vão chegando, a conta gotas, e estacionando também a seguir ao Skoda, os outros carros, o Renault do Castelo, o honda da Fernanda, … Enquanto os “revistadores” vão metendo as revolucionárias mãos por entre as nossas bagagens e abrindo sacos e mochilas, e dizendo “ – Dá cigarro! … Dá tabaco! …”o comandante, este, jovem e bem vestido, aproxima-se de mim e interpela-me:
- Boa tarde camarada, os teus documentos? – Cumprimento-o também e passo-lhe os papéis para as mãos. Abre-os, lê e relê, dum lado e de outro (começo a pensar que já estou lixado) e depois pergunta-me!
– “O Camarada chama Preto?” – “Sim!” – Respondo – “O nome do camarada é Preto?” – “Sim é o meu nome”.
Em voz alta, avisa os outros guerrilheiros para reunir os condutores e passageiros junto aos tambores do controlo para uma banja. Em pouco mais de um minuto estamos todos sentados em círculo em frente do meu carro. Começo a pensar que a minha vida está a andar para trás.
Com este povo de veraneantes de fim-de-semana, queimados do sol, cobiçando chegar a casa para um banho de água doce, todos reunidos, começa a banja, dirigida pelo jovem comandante. Passeando-se com estilo, numa voz forte, para que todos oiçam, mas sem gritar.
“Boa tarde camaradas! – ao qual se segue, um nosso, “Boa tarde!” em uníssono. E continua, pondo-me a mão no ombro e obrigando-me a levantar, vai debitando estas frases, entrecortadas por breves silêncios, para que possamos, perceber a profundidade desta prelecção. – “Este camarada é branco…! Mas este camarada chama Preto! Jorge Preto… é o nome dele!... Este camarada… é um branco!... Mas é o chófer!... É o chófer deste aqui!” - dirige-se apontando ao Thompon – “Este camarada é passageiro!... Mas este camarada é preto… Isto é o que temos aqui!... Um branco que chama Preto!... Um preto que é passageiro!... O passageiro é preto!... O chófer é branco!... É um branco que chama Preto… Este camarada não é racista! …” – E repetiu esta frase por mais três vezes, à procura da oportunidade, para arrancar com os já famosos incentivos dos comícios -“Abaixo o racismo!” ao que respondíamos em coro – “Abaixo”. Seguiram-se outros “Abaixo… isto” e “Viva aquilo” até que se cansou. Deu-me os documentos para a mão, mandou retirar os tambores e o pau, fez-me uma imitação de continência e mandou-nos todos embora com desejos de “Boa viagem para a capital”, sem que, finalmente algum dos mais de dez carros que entretanto se foram acumulando naquele improvisado posto de controlo, fossem passados em revista. Arrancamos, de novo na “cola da poeira” entre atordoados e felizes a caminho dos próximos, não sei quantos, controlos que nos separavam do ferry-boat da Catembe para Maputo.

Jorge Matos Preto (Dezembro-2010)

Banja – Reunião
Cola da poeira – Tempo que mediava entre a partida de dois carros em estradas não alcatroadas. O segundo carro partia à distância de evitar a poeira do primeiro.
Chófer – motorista
Machambas – horta, herdade, propriedade agrícola
Skoda – automóvel fabricado num dos antigos países satélites da URSS a ex-Checoslováquia
Kalachnikof – metralhadora de fabrico russo que equipava os guerrilheiros da Frelimo

Xiconhoca – figura estilo Zé-povinho, simbolizando o que era mau para o novo Moçambique

06/12/2010

Como vim ao mundo

A vida era no mato.
Entre plantações de chá a perder de vista, Acácias com flores de todas as cores, mangueiras, goiabeiras, bananeiras, árvores da borracha e um infindável e robusto arvoredo. No Tacuane! O clima era de guerra, ou pelo menos de prevenção para a guerra. Não é que eu alguma vez tenha visto guerra, porque nunca a vi, mas fui preparada e ensinada desde pequena a defender-me e/ou fugir. Fui uma felizarda, porque nunca precisei. :) Os homens, como sempre incumbidos de proteger as mulheres e as crianças, combinavam e definiam estratégias de defesa e dissimulação. As mulheres seguiam as suas vidas e fingiam que nada se passava. As crianças mais pequenas brincavam inconscientes do perigo, as mais crescidas iam sendo alertadas e treinadas em técnicas de escape e defesa. A vida era boa, tão boa quanto alguém podia desejar nos anos 60. Certo dia aconteceu…, foi assassinado um homem! Encontrado morto na casa que lhe havia sido atribuída na véspera. Nem chegou a iniciar o trabalho no seu novo emprego, na Madal. Soou o alerta… Mulheres e crianças evacuadas de avião e postas em segurança na cidade mais próxima, Quelimane. No lar da Madal. Homens reunidos, à noite, em casas seguras, quais fortes de guerra! Ficou para trás uma mulher, que, por esperar um filho para o mês seguinte e não conhecer ninguém em Quelimane, foi transportada de carro por picadas, aos saltos, tão depressa quanto o marido conseguia, ao longo de 110Km, até à vila mais próxima, Mocuba. Aí sim, conhecia pessoas que a acolheriam como uma filha! Mas, o resultado, o filho que esperava para o mês seguinte, nasceu no dia seguinte, 21-01-1965! E não era filho, era filha! Eu! :)))


Assim nasci com cerca de duas semanas de avanço relativamente ao previsto. Terá sido do susto que a minha mãe apanhou? Terá sido da viajem atribulada, aos saltos por picadas? Teria eu pressa de nascer? (É bem possível!... Ainda agora "tenho bichos carpinteiros" e não sou capaz de estar quieta) Ou teria sido apenas o tempo mal contado? Não sei e também não interessa, porque correu tudo bem! Eu nasci bem e saudável! A minha mãe teve um parto doloroso, como são (em geral) todos os partos ao natural, ainda mais sendo da primeira gravidez. A minha madrinha Augusta Oliveira tratou a minha mãe como uma filha e o meu padrinho teve o trabalho de a transportar várias vezes à Maternidade de Mocuba e de volta para casa, por ainda ser cedo. Acabei por nascer pelas 17:05H, depois de um dia de viagens à Maternidade de Mocuba.


Sempre ouvi a minha mãe contar que nesse mesmo dia nasceu também na maternidade um filho do Sr. Gouveia. Mas nunca conheci esse menino, agora homem. Também sempre ouvi a minha mãe contar que o meu pai foi de imediato chamado pela rádio, para o Tacuane, para ir novamente a Mocuba porque já lá tinha uma menina à espera :) Contam que depois dessa viagem o meu pai comentou que nunca antes tinha batido tantas vezes com a cabeça no tecto do carro! Guiar por picadas a alta velocidade dá uns valentes abanões!!! :)))



Bem Vindos!

SEJAM TODOS MUITO BEM VINDOS! 


Aqui têm um espaço para escrever as vossas histórias felizes, partilhar as vossas fotografias, os vossos vídeos... 

Podem contar comigo para contar algumas histórias e para o suporte tecnológico. 

Conto com todos vós para outras tarefas que sejam necessárias. Como revisão, correcção, selecção dos textos e imagens. 

Conto também convosco, alguém de entre vós, que tenha conhecimentos em editoras que estejam interessadas em apadrinhar esta causa. De preferência gratuitamente! 


HAMBANINE e KANIMAMBO!
:))