04/04/2011

À ESPERA - MIA COUTO

"Aguardo-te
como o barro espera a mão.

Com a mesma saudade 
que a semente sente do chão.

O tempo perde a fonte
e a manhã nasce tão exausta 
que a luz chega apenas pela noite.

O relógio tomba
e o ponteiro se crava
no centro do meu peito.

Fui morto pelo tempo
no dia em que te esperei."

Mia Couto in Idades Cidades Divindades

PALAVRA QUE DESNUDO - MIA COUTO

"Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro 
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo."

Mia Couto in "Raíz de Orvalho

DESENCONTRO - MIA COUTO

"Não ter morada
habitar
como um beijo
entre os lábios
fingir-se ausente
e suspirar
(o meu corpo
não se reconhece na espera)
percorrer com um só gesto
o teu corpo
e beber toda a ternura
para refazer
o rosto em que desapareces
o abraço em que desobedeces."

Mia Couto in "Raíz de Orvalho"