07/01/2011

GUARDA-CHUVA

Ás vezes penso que foi um sonho...

Mas a realidade abocanha-me os sentidos e embacia-me a mente.

Foi num passado já longínquo, numa terra distante e fértil, onde o mar tudo banha em seu suave balanço, onde tudo acontece e tudo apetece.

Estava-se na época das chuvas, quando o céu se abre e cospe a sua raiva destemidamente. Ninguém se atrevia a enfrentar a intempérie e todos aguardavam, sem sobressalto, que a agitação dos nimbos se acalmasse e escoasse pelas gretas da terra aquecida.

Numa janela, um rosto pequeno espreitava anonimamente; a sua ânsia de sair e correr lá para fora era demasiado evidente e o seu coraçãozinho pulava de contentamento com a aguardada expectativa.

Abriu-se então uma brecha e a menina, radiante, esgueirou-se para a rua ainda húmida, como se beijada pelo orvalho. Ia descalça, como sempre fazia, para melhor sentir o toque da terra; chapinhava nas poças transbordando felicidade por aquele momento roubado à rotina dos seus dias.

Mas depressa se esfumou aquele instante, tal como a água, momentos antes, havia sido bebida pela avidez do solo.

Foi numa tarde daquelas que "Memen" (assim se chamava a menina), ávida de coisas novas e algo estranhas naquelas paragens, pediu ao pai um "guarda-chuva", artefacto pouco usado e nada útil durante aqueles "dilúvios".

Seu pai, homem de fôlego e com grande coração, compreendeu o desejo da filha e, nessa noite, chegou a casa acompanhado de um lindo guarda-chuva às bolinhas amarelas, que lhe estendeu como se lhe entregasse algo muito frágil e valioso.

Ela tocou-o, ao de leve, e sentiu um arrepio apossar-se do seu ser que lhe subiu pela espinha até dentro da sua barriga.

Que magia rodeava aquele objecto!!!

Tinha sonhado tanto com ele, que agora que o tinha na mão, não sabia exactamente o que fazer.

Levou-o consigo para o seu quarto e ali, abraçada a ele, adormeceu, sonhando um sonho que só as crianças sabem sonhar.

Ainda mal tinha despontado o dia, já "Memen" estava vestida e sentada na cama com a sua mais recente aquisição e com o olhar perdido, colado à janela; os seus olhos, negros como azeitonas, fitavam o céu que sorria agora em tons de azul brilhante.

Mas como poderia ser??? Onde estava a chuva do dia anterior??


"Memen" correu porta fora, armada dos seu guarda-chuva e esperou, determinada, que as nuvens voltassem a transpirar aqueles fios de água que ela tanto almejava.

Mas o dia não estava de feição...a chuva tinha-se mudado para outra morada e o sol brilhava agora no seu esplendor.

A tarde chegou e nada mudou e "Memen", sempre de guarda chuva na mão, vagueava pelo jardim verdejante, onde dois pequenos caracóis se haviam alapado no assento do seu baloiço.

Triste e desesperada, com a decepção estampada no rosto, "Memen" deixou o jardim e caminhou para casa. Subiu as escadas cabisbaixa e chegou ao seu quarto ensolarado.

Chegara a hora do seu banho e "Memen", já pronta a saltar para dentro da banheira, de repente PAROU!

Porque não???....

Bem...realmente não era a mesma coisa, mas....que importava??

Deveria ser uma sensação muito parecida com aquela que ela sonhara.

E de novo entrou no quarto, de rompante, agarrou no seu guarda-chuva às bolinhas amarelas e entrou para a banheira, desenfreada.

Abriu o chuveiro por cima da sua cabeça e ali ficou, estática, como que estarrecida, inebriada de tamanha felicidade, sentindo, finalmente, as gotas de água a cair e escorregar pelo seu guarda-chuva!

Carmen Sêco / 05.01.11

06/01/2011

dificuldade de comunicação

Certo dia, pela tardinha, estava eu na minha casa, no Xai Xai, mais propriamente no quintal, eis que vejo aproximar-se de mim uma mulher negra que aparentava estar pela meia-idade. Trazia na mão uma lata, daquelas que se compravam cheias de petróleo, as quais, depois de esvaziadas, serviam para as pessoas transportarem água, encherem de castanha de caju, para depois venderem aos merceeiros no mato etc.

 

A mulher negra aproximou-se da mulher branca, que neste caso, particular, era eu, e disse:”combela mate senhora” fiquei a olhar, sem perceber o que aquele pedido significava, vi que era um pedido mas não descortinava o seu significado, e disse:”quê!!!?” repetiu o pedido: “combela mate senhora” e eu nada! Então, ela resolveu agir de outra forma mais explícita. Pegou-me num braço e tentou levar-me ao sítio onde estava o que descodificava o enigmático pedido. Deixei-me levar, pois também estava tomada pela curiosidade. Quando chegamos perto da torneira, eu virei Édipo e ficou desfeito o enigma. Ela queria água.

 

Disse:”haaaaaaaa!!!! Você quer águaaaaaa!!! Está bem! encha a lata.” Encheu a lata, fez umas vénias, e prenunciou uma frase, essa sim era-me familiar. Foi: “kanimanbo senhora” Foi-se embora e que eu me lembre, não voltou mais

 

Rosa Cortez    

    

05/01/2011

Água de Lisboa

Decorria o mês de Maio de 1969. O frio já se fazia anunciar. Sinal disso era as mamanas com as cabeças cobertas, com as capulanas coloridas. Eu tinha pisado terras de África havia seis meses. Morava numa terra a que uns chamavam vila de João belo outros Xai Xai.

 

Pela tarde, devia ser pois, o meu marido estava em casa, os funcionários públicos tinham horário único, apareceu-me um velhote negro, o qual se sentou na soleira da minha porta da cozinha e disse-me: “senhora dá-me água de Lisboa!” Eu dei uma gargalhada. Eu só tinha vinte e um anos, e com essa idade nós rimos por tudo e por nada, mas esta gargalhada não foi só fruto da juventude, foi pelo absurdo, pensava eu, do pedido dele. E disse:”ouça lá você por acaso não apanhou muito sol na cabeça? Então eu acabei de chegar a África e você quer que volte para a Europa buscar-lhe água?”e pensei: calhando isto é um ritual de praxe, eu era caloira em terras de África. O meu marido ouviu a nossa discussão, no bom sentido claro, e perguntou:”o que se passa?” “ele quer água de Lisboa. Eu acho que ele está doído” “não está nada” respondeu o meu marido, e também se riu, não dele mas de mim, e disse: “o que ele quer é vinho”. Perante aquela resposta fiquei de boca aberta. Também não era para menos.

 

Ora qual foi a ilação que eu tirei daquela história? Foi que os brancos foram dizer aos negros que Lisboa era uma terra abençoada ao ponto de a água que lá havia ser vinho. O vinho sempre conquistou os povos, desde os tempos bíblicos.

 

Rosa Cortez

 

P.S. Escusado será dizer que lhe demos um copo de vinho ou seja,”água de Lisboa” e ele fez uma festa