09/12/2010

No fio da Navalha

No fio da navalha 

Éramos jovens conscientes que viver em Moçambique, era em 1976, cada vez mais, viver no fio da navalha. Por tudo, mas muito mais, por nada, era certo que o dia seguinte seria mais uma incerteza. A lei era selvagem e qualquer iletrado proprietário de uma kalachnikof ditava leis. Eram as rusgas nocturnas a locais de lazer que normalmente enchiam as prisões de bairro com os distraídos que se esqueceram do B.I. em casa (depois enviados para campos de reeducação). Eram os controlos selvagens nas estradas com guerrilheiros esfomeados que se apoderavam do que lhes interessava, para matar a fome, o vício e outras necessidades vingativas. Eram as idas para trabalhos nas machambas, em que improdutivamente capinávamos numa semana o mato, exactamente o mesmo mato que entretanto crescera desde a última vez que ali estivéramos. Eram as reuniões, os comícios e as banjas a toda a hora dos “grupos dinamizadores”, do bairro, da Universidade, do Liceu, dos trabalhadores, etc. Era… bom! Isso agora não interessa nada, mas para se entender a história que se segue, fazia falta este preâmbulo.
As idas de fim-de-semana à Praia da Ponta do Ouro, haviam-se tornado um habitue para nós que vivíamos, estudávamos e trabalhávamos em Lourenço Marques, agora Maputo, quando não surgia outra ideia melhor para “fugir” da cidade que nestes dias se estava a tornar demasiado stressante com todas as notícias, contra-notícias e boatos, que sempre circulavam a propósito de tudo e de nada. Dizia-se “o Xiconhoca tem orelha de boateiro”.
Tínhamos então terminado mais um fim-de-semana na praia da Ponta do Ouro. Por razões de segurança nossa (nunca o fizéramos no tempo da guerra), viajávamos sempre em comboio, de várias viaturas, partindo umas atrás das outras, à vista na “cola da poeira”. Na altura eu tinha ficado responsável de um Skoda, carro que não merecia muita confiança para viagens longas. Eu era o condutor e levava como pendura o Thompon, um colega negro, professor como eu, no Liceu António Enes. Precisamente pela pouca fiabilidade no Skoda, partimos à frente.
Andados cerca de dez quilómetros surge o primeiro controlo na estrada. Dois tambores ao alto, encimados com uma vara de bambu atravessada de lado a lado. Não se vê vivalma, mas sabemos, por outras experiências menos felizes, que devemos parar. Paramos e vou logo abrindo capô e bagageira para permitir a revista. Aos poucos, do nada e de entre as árvores vão surgindo os nossos “camaradas guerrilheiros”. Um deles, reconheço-o, traz a tiracolo o rádio transístor com que me ficou há uns quinze dias atrás. Está desligado, devem-se ter acabado as pilhas, penso eu. Entretanto vão chegando, a conta gotas, e estacionando também a seguir ao Skoda, os outros carros, o Renault do Castelo, o honda da Fernanda, … Enquanto os “revistadores” vão metendo as revolucionárias mãos por entre as nossas bagagens e abrindo sacos e mochilas, e dizendo “ – Dá cigarro! … Dá tabaco! …”o comandante, este, jovem e bem vestido, aproxima-se de mim e interpela-me:
- Boa tarde camarada, os teus documentos? – Cumprimento-o também e passo-lhe os papéis para as mãos. Abre-os, lê e relê, dum lado e de outro (começo a pensar que já estou lixado) e depois pergunta-me!
– “O Camarada chama Preto?” – “Sim!” – Respondo – “O nome do camarada é Preto?” – “Sim é o meu nome”.
Em voz alta, avisa os outros guerrilheiros para reunir os condutores e passageiros junto aos tambores do controlo para uma banja. Em pouco mais de um minuto estamos todos sentados em círculo em frente do meu carro. Começo a pensar que a minha vida está a andar para trás.
Com este povo de veraneantes de fim-de-semana, queimados do sol, cobiçando chegar a casa para um banho de água doce, todos reunidos, começa a banja, dirigida pelo jovem comandante. Passeando-se com estilo, numa voz forte, para que todos oiçam, mas sem gritar.
“Boa tarde camaradas! – ao qual se segue, um nosso, “Boa tarde!” em uníssono. E continua, pondo-me a mão no ombro e obrigando-me a levantar, vai debitando estas frases, entrecortadas por breves silêncios, para que possamos, perceber a profundidade desta prelecção. – “Este camarada é branco…! Mas este camarada chama Preto! Jorge Preto… é o nome dele!... Este camarada… é um branco!... Mas é o chófer!... É o chófer deste aqui!” - dirige-se apontando ao Thompon – “Este camarada é passageiro!... Mas este camarada é preto… Isto é o que temos aqui!... Um branco que chama Preto!... Um preto que é passageiro!... O passageiro é preto!... O chófer é branco!... É um branco que chama Preto… Este camarada não é racista! …” – E repetiu esta frase por mais três vezes, à procura da oportunidade, para arrancar com os já famosos incentivos dos comícios -“Abaixo o racismo!” ao que respondíamos em coro – “Abaixo”. Seguiram-se outros “Abaixo… isto” e “Viva aquilo” até que se cansou. Deu-me os documentos para a mão, mandou retirar os tambores e o pau, fez-me uma imitação de continência e mandou-nos todos embora com desejos de “Boa viagem para a capital”, sem que, finalmente algum dos mais de dez carros que entretanto se foram acumulando naquele improvisado posto de controlo, fossem passados em revista. Arrancamos, de novo na “cola da poeira” entre atordoados e felizes a caminho dos próximos, não sei quantos, controlos que nos separavam do ferry-boat da Catembe para Maputo.

Jorge Matos Preto (Dezembro-2010)

Banja – Reunião
Cola da poeira – Tempo que mediava entre a partida de dois carros em estradas não alcatroadas. O segundo carro partia à distância de evitar a poeira do primeiro.
Chófer – motorista
Machambas – horta, herdade, propriedade agrícola
Skoda – automóvel fabricado num dos antigos países satélites da URSS a ex-Checoslováquia
Kalachnikof – metralhadora de fabrico russo que equipava os guerrilheiros da Frelimo

Xiconhoca – figura estilo Zé-povinho, simbolizando o que era mau para o novo Moçambique

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